Friday, May 10, 2013

VISTA CANSADA

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto : um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou trinta e dois anos pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer. 


Como era ele ? Sua cara ? Sua voz ? Como se vestia ? Não fazia a mínima idéia. Em trinta e dois anos nunca o viu. Para ser notado o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar,  estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser que também ninguém desse por sua ausência. O HÁBITO SUJA OS OLHOS e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos.E vemos ?  Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto  não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia a dia, opacos. 

É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.