Monday, April 21, 2014


Paulino Cícero Vasconcellos
Para Eu

8 de Abr
MEUS CADERNOS

Antes que me esqueça

                       Nossas memórias costumam evaporar. E as lembranças, com o tempo, começam a amarelar, a perder a cor, como acontece com as fotografias longamente guardadas. Andei por vários lugares tentando encontrar explicações para fatos e episódios ocorridos na minha São Domingos do Prata. Refiz e encadernei a coleção de A VOZ DO PRATA, que pertenceu ao meu pai e contem um sem-número de fatos e episódios, que ao longo de trinta anos de edição semanal sistematizou um pouco de nossa história. Recorri ao arquivo do Cartório do Crime, onde pude recolher cópias de processos, cuja repercussão abalou em certa época nossa cidade. Vi os alfarrábios da Prefeitura e cheguei até a ter em mãos alguns livros de tombos de nossas igrejas, do Prata, Dionísio e São José do Goiabal. E cheguei a uma conclusão: vou lançar nos MEUS CADERNOS algumas lembranças, que, eventualmente, terão fugido a estas fontes de pesquisa.

                           A primeira era o calçamento da cidade, que é um diferencial de progresso e de desenvolvimento para nossas pequenas comunidades.  Nossa terra era calçada da pracinha do velho hospital até o cruzamento da rua principal com a Rua do Pindura Saia, que dava acesso ao antigo campo de futebol do Atlético Pratiano. Não era um calçamento comum. Não era asfalto, que sequer conhecíamos, nem paralelepípedo e muito menos poliédrico.                                Ele era feito de grandes lapas de pedra lamelar. Algumas com quase um metro quadrado. Também, para que querer mais se o município não tinha mais do que oito ou dez automóveis e caminhões. Agora, o que lá não faltava eram animais de sela e de carga. Muitos cavalos, mulas, burros e jumentos.  Eram tantos que, nas missas dominicais, todos os amarravam no adro da igreja e o Padre Geraldo Barreto Trindade, nosso bom e santo vigário, começava sempre a sua prática, dizendo: “é um absurdo!... o adro da igreja mais parece uma estrebaria!”.
   
                          Nós não morávamos nesta parte privilegiada e central da cidade, onde ficavam a igreja de São Domingos de Gusmão, nosso padroeiro, a Prefeitura Municipal, que também abrigava a Câmara Municipal e a Corporação Musical Santa Cecília, além do magnífico prédio do Grupo Escolar Cônego João Pio, construído, como lá está, belíssimo, lembrando o estilo “art noveau”.  Em compensação, embora mais distante, na Rua da Volta, era um ambiente muito mais democrático. Ao lado da casa do meu pai, que ostenta até hoje na frente duas belas palmeiras reais – Maria e Cristina - nomes de minhas duas primeiras irmãs. Nossa vizinhança era bem modesta. Ao lado morava o pedreiro João Paulista. Depois vinha a casa de Dona Tatá, com muitos filhos e uma zelosa viuvez. Passava, em seguida a casa de Joaquim Torres, sem assoalho e sem forro. E eu o via todo dia chegando pela tarde com a enxada ou a foice nas costas. Suas filhas ajudavam em muitas casas da rua: eram babás, cozinheiras, lavadeiras. Do outro lado da rua, além da casa do escrivão Sô Teófilo, casado com minha tia Chiquinha, morava também Dona Nega, outra viúva carregada de filhos pequenos. O mais interessante era o acesso livre que eu tinha a todas estas casas e até às suas cozinhas. E me impressionava como famílias tão grandes tinham na trempe, cozinhando, panelas tão pequenas. Aquilo me parecia uma contrafação e me roía por dentro.

                        Domingo, além da missa matinal em que o Padre Geraldo continuava insistindo em que “os pais precisam mandar seus filhos para a escola... as mães precisam mandar seus filhos para o catecismo...” havia o catecismo ás duas horas da tarde. A professora era a querida Gessy, que mais tarde se casou com o advogado Nílcio Miranda, portando sempre nas mãos um livro mágico, que mostrava a diferença entre o pecado venial e o pecado mortal. A alma era representada pelo desenho de um coração. O pecado venial era um coração cheio de pequenas pintas negras. Já o pecado mortal era um coração mais negro que noite de chuva. E eu contestava: “Mas dona Gessy, se eu cometer tantos pecados veniais, mas tantos veniais, o coração dos veniais ficará negro como o dos pecados mortais!...” E a pobre coitada tinha que buscar alta filosofia para negar que isso pudesse acontecer.
              
                              Mas o melhor é que a aula de catecismo dava-me e a meus irmãos Paulo e Chico o direito a levar duzentos reis para cada um adquirir no Bar Simeão um picolé. A terra estava progredindo. Já tinha até bar com geladeira. Foi, então, que conhecemos picolé, sorvete, guaraná gelado e outras delícias. Até àquela hora ninguém no Prata conhecia sequer uma cerveja gelada. Elas eram esfriadas nos porões frios das casas, frequentemente, mergulhadas em saco de sal. Um dia, após o catecismo como mandava minha mãe, pedi ao Sô Felipe um picolé, tirei a casquinha de papel, dei uma boa lambida e lhe entreguei os duzentos réis. “Não - disse ele, rolando um palito entre os dentes – agora o picolé é trezentos réis.” Aí veio o encilhamento. Que fazer? Devolver o picolé?  Pedir desconto? Programar o pagamento faltante para a próxima semana?  O Sô Felipe liquidou bem a questão: “então, hoje você paga duzentos réis, mas na semana que vem já é trezentos réis”. Indaguei qual a razão daquele aumento e, como era de seu hábito, foi muito sincero: “aumentei o picolé, porque agora estou construindo um prédio para bar e hotel ao lado da igreja”. Ao que lhe respondi que ia propor ao meu pai aumentar do mesmo modo o preço das consultas médicas, porque ele estava reformando a casa que comprara de herdeiros de Dona Bona...

                              A gente deve muito ao Sô Felipe. Foi em seu bar que vi, pela primeira vez, um alemão enorme, vestido com um terno caqui, alfinete de ouro fechando o colarinho, barba bem ruiva e boné na cabeça, entrando no estabelecimento com uma garrafa já aberta de cerveja, abrindo a porta da geladeira de serviço e de lá retirando uma prato de pepino cortado e cebola tomando esta estranha refeição. Era um alemão da Colônia Guidoval, onde os filhos dos alemães e italianos, levados pelo Governador Arthur Bernardes, dividiam conosco as salas de aula do Cônego João Pio. E que às vezes, trocavam conosco a merenda que cada qual trouxera de casa.

                              O Prata não tinha o hábito das celebrações cervejeiras. O que o povo aprendera a beber era mesmo a velha cachacinha por lá mesmo fabricada pelo Waldemar Rolla – a Quitandinha. Mas, quando chegaram à terra os integrantes da segunda geração germânica, trabalhando na POHLIG HECHEL na implantação de 54 quilômetros de teleférico para transporte de carvão vegetal destinado à Belgo Mineira, diariamente após a jornada iam todos para o Bar do Felipe, onde só interrompiam a cerimônia quando não cabia mais nenhuma garrafa vazia sobre a mesa. Aí, o marco zero de uma futurosa habilidade da terra, celebrando carnaval, festa de padroeiro, vitórias esportivas – literalmente tudo na base da gloriosa lourinha tão apreciada.

                              Num domingo, terminada a aula de catecismo da Dona Gessy, ninguém se preocupou em buscar o picolé do Felipe Simeão. É que meu pai havia doado ao Clube Atlético Pratiano um jogo de redes para a partida inaugural contra o Jabaquara – prestigiosa equipe de
Barão de Cocais. Minha terra estava mesmo crescendo... Imagine jogar futebol com uma equipe prestigiada e, ainda mais, usando redes atrás das traves dos gols! Ninguém queria perder aquele espetáculo. Tínhamos um bom goleiro, o Jair Mendes. Mas naquele dia nada deu certo. O Jair chegou a engolir bolas chutadas da área adversária. Perdemos a partida por sete a três. Em compensação foi o dia da glória e da exaltação para o novo goleiro que nascia: José Barbudinho, que comeu a bola e fez defesas impossíveis, quase que eu diria inacreditáveis. Foi neste mesmo campo que alguns anos mais tarde, jogando contra a equipe de estudantes de Nova Era, numa entrada mal inspirada sobre o Talmo Albeny Araújo, tive a ruptura do menisco. Mas, como quem herda não furta, eu, como “center half” do time, apenas repeti o que ocorrera a meu pai, quando estudante, num "match” Paulistas versus Cariocas, lhe esbordoaram o joelho. Meu pai que assistia à partida, chegou-se a mim, fez uma série de torções e apalpadelas e me disse: “pode sair pra casa". Você  não vai deixar o jogo, vai deixar é o futebol”. Não deu outra.

                              E assim passavam os dias em minha terra. Não havia muita novidade, a não ser os caminhões de carvão, que começaram a riscar nosso solo, buscando de Dionísio e Santa Izabel o produto que alimentava os altos fornos da Belgo Mineira, em João Monlevade.  Várias vezes aconteceu de as cargas altas nas carrocerias, sofrendo o sôfrego balançar das ruas desniveladas, baterem nos beirais dos telhados, deixando carvão e telhas pelo chão da rua ao som de infindáveis discussões. A vida continuava e eu com a grave responsabilidade de buscar diariamente os dois litros de leite no Sr. Astolfo Perdigão, onde eu chupava grossos pedaços de sal para gado e ouvia dele, enquanto media o meu produto, boas e alegres histórias, que ele sabia contar melhor que ninguém. Bom era quando a Deminha, que só me chamava de Cisco, me via no cômodo leite e, invariavelmente, entrava em casa e me trazia biscoitos, bolo ou outras luxúrias bucais, que sua mãe, Dona Tereza, fazia melhor que ninguém e o Joãozinho da Casa Rolla saia de casa em casa, oferecendo com uma um desmedido balaio de guloseimas. Certo dia, quando seguia para o Sô Astolfo, vi na entrada do cemitério das Lages o velho rabecão “defunctorum”, que estava no chão, abrigando um homem de cor, cabeça branca, uma corda em volta do pescoço e totalmente nu, da cintura para baixo. Lá estava o delegado municipal de policia, o saudoso Inhô Gomes, que poderia ter-se dirigido a mim, como aquele soldado de Graciliano Ramos, em “Vidas Secas” ordenando ao Fabiano: ”desafasta”. Mas, não. O Inhô educado e amigo me disse nos meus sete anos: “não acho bom você ficar aqui. A cena não é para crianças. Vai, vai rápido buscar o seu leite”. E eu saí...

                              E a vida continuava. Ao lado da Farmácia Popular, de Nilo Barbosa, que tinha todo e qualquer remédio que você procurasse, onde um dia nascera o Bar Semião, surge uma loja cujo nome homenageava o glorioso São José. E sabem a quem pertencia? Era do Sô Tacinho, que, na época, havia cumprido uma vilegiatura digna de Marco Polo.  Eu me lembro dele como fiscal da prefeitura, à frente de uma plêiade de homens que capinavam ruas, abriam valas para redes de serventias diversas, com o relógio no bolso e a folha de apontamentos na mão. Há, na vida, duas linhas que devem caminhar sempre paralelas: o tamanho da família e o nível das rendas.  Mestre Tacinho tinha uma família grande. Bem grande. E a Prefeitura pagava pífios salários a seu pessoal – tudo na proporção de sua pobreza.  Sô Tacinho vai com Naná e os meninos para Coronel Fabriciano, onde tenta melhor sorte. Naquela época a, os Lazaristas do Caraça entenderam de fazer um filme, que mostrasse a Minas e ao país a beleza corajosa que haviam construído na serra do mesmo nome, em Santa Bárbara.  E não é que o Tacinho e seu filho Goar levam os louros na disputa pelas vagas de atores? O Tacinho seria o diretor e Goar um dos noviços da veneranda instituição. Um dia, anos depois, ele me confidenciou que as rendas de suas aventuras cinematográficas lhe haviam permitido adquirir a casa da família e inaugurar o pequena Casa São José – tudo no Prata, para onde o mandou o coração e a saudade.

                              Na hora de entrar na escola, o velho prédio do Cônego João Pio estava em reforma. Diga-se, aliás, de passagem que o vetusto edifício pagou sempre um alto preço ao desenvolvimento da cidade. Do lado direito, abrindo o novo bairro no quintal de Manoelzinho Ourives, o Prefeito Félix de Castro lambeu para a Prefeitura os terrenos de seu campo de voleibol, dele fazendo a Rua Capitão Albano Morais.  Pela esquerda, quando se iniciou em 1.959 a construção da nova matriz do padroeiro, a cúria ou a paróquia - não sei bem quem foi - lambeu um pedaço enorme dos terrenos que eram, originalmente, agregados ao velho estabelecimento, que manteve, no entanto, íntegra, sua fachada original. Mas para nós ela é eterna. Com os companheiros que vinham até do São Nicolau do Gandra, a oito quilômetros, como esquecer Dona Gracinha Coura, Dona Neném Rolla, Dona Albertina e aquele formidável elenco de mulheres, que abriram nossos olhos para as letras e para os números, além dos valores morais que inspirariam nossas vidas?

                              Bom mesmo é quando havia festas. A cidade se transfigurava. E quanto mais importante a celebração, maiores eram as mudanças. Quando havia exibição de peças de teatro, geralmente feitas nas duas salas de aula acopladas do grupo escolar lá estava, também, o Sô Tacinho, mestre de nossa banda, com um conjunto de músicos, que exibiam nos intervalos dos atos o Danúbio Azul, de Strauss, além de valsas famosas no repertório pratiano. Nas festas do padroeiro o adro ficava coberto de barraquinhas, algumas com pé-de-moleque e outros doces, outras com variedades de jogos para adultos e crianças e não faltava nem mesmo aquela cheia de casinhas, onde um coelhinho de verdade era liberado pelo “crupier”, ficava tonto e perdido pela gritaria do pessoal e depois se escondia numa casinha, que era a do vencedor daquela mão. Enquanto isso, o Sô Tacinho, Jaime Araújo, Banico, Barbudinho, Pelágio e outros artistas dos instrumentos musicais, em cima do coreto, garantiam a continuidade musicada da brincadeira.
              
                              Mas houve duas festas que jamais sairão da minha memória infantil. A primeira se realizou em l3 de agosto de 1.944, data de minha primeira comunhão, quando o Padre Geraldo e não sei quantos padres mais, além do bispo Dom Helvécio, de Mariana, celebraram o centenário de instalação de nossa paróquia. A cidade acordou embandeirada. As casas onde passaria a procissão colocaram nas janelas suas melhores e mais escolhidas toalhas e tapetes. Havia arcos feitos de bambus, muito foguetório e bandas de música vieram de longe para aumentar a força de nossa fé. A cidade ficou que nem os centros de peregrinação do Islã, no Oriente Médio, tal o volume de pessoas que transitaram incansavelmente por nossas ruas ao longo de todo o dia.

                              A outra festa foi no dia 8 de maio de 1.945. Neste dia os alemães se renderam e era o fim do teatro de guerra em que se transformara a Europa. Foi totalmente improvisada, a festa. Aí pelas cinco ou seis horas da tarde, começaram os foguetes. Em seguida o sino da Matriz começou a bimbalhar, no que foi acompanhado – fato raro – pelo sino da igreja do Rosário. O Centro da cidade, defronte a Igreja e a Prefeitura, começou a receber gente que vinha até da roça, e em pouco tempo estava desfilando para lá e para cá a nossa Corporação Musical Santa Cecília, exibindo marchas e hinos patrióticos. E havia uma enorme e desencontrada gritaria. Uns diziam querer ver Hitler e Mussolini no inferno.  Outros davam vivas a Getúlio Vargas. E aquilo foi até tarde da noite.

                              Mas houve, do mesmo modo, episódios tristes que a gente não gosta de rememorar. O dia em que morreu Galo de Ouro foi um deles. Da greta da veneziana de nossa casa que ficava defronte o Posto Esso, ainda não construído, vi saindo o corpo do brincalhão e jovial cidadão da casa de Dolorata, onde por amores comprados ou mal correspondidos o matou um soldado da polícia, lotado no Prata.  Quando o rabecão passou exatamente debaixo da janela de nossa casa ficamos todos tristes. Morte lá não era comum, especialmente por assassinato.  Seu nome, do Galo de Ouro, lhe fora doado pela sabedoria popular, que o via como constante apreciador da aguardente que respondia por este nome. Ele, aliás, era um dos dois únicos pratianos que tinham sobrenome de aguardente. Exatamente, a que eles mais apreciavam. O outro era o Juca B.C. Esse, membro de uma das famílias mais ilustres da terra, ficava todas as noites de paletó e, às vezes, com gravata, discursando com sua voz arrastada pelas ruas até tardas horas, sozinho, discursando e curtindo a sua B.C., que era o conjunto de iniciais de seu fabricante, o velho Benedito das Cobras, onde ficava seu alambique.

                              Depois disso, vem o colégio, termina a minha infância e começa a adolescência. Aí são outras histórias.

Paulino Cícero de Vasconcellos