Monday, October 04, 2021

O achamento da moça perdida e a casinha feliz...

Lady Foppa

Terezinha  era filha do seu Antônio e dona Eva. As pessoas se referiam a ela como Eva de Antônio,  o povo tinha esse cesto de falar fulano de Beltrana  e beltrana de fulano. No caso, o que era falado por último  era o dono: Aninha  de Chico, quem mandava era o Chico . José  de Etelvina,  quem mandava era a Etelvina.

O casal tinha essa filha, que era a moça mais bonita  que eu tinha batido os zóios!                                             Certa  vez,  em uma festa de São  João,  na casa de um primo do papai, a moça ficou noivando  ao lado do prometido  dela de nome Avelino, filho do seu Onofre . Os dois sentaram pareados, malemá  encostavam  os ombros uns nos zotros, os pais dela sentaram atrás  e só ficavam de butuca  no casal.
Papai era muito custoso e botava reparo em tudo, falou para mamãe:
- Oia lá cheiro, repara o filho bocoió do Onofre , é  muito sonso, entra ano, sai ano, ele noiva com a moça,  e nunca nem enroscou o dedo minguinho dele no dedinho dela. Aquele  rapaz baba, a baba dele só não  escorre no chão, porque ele deixa ela descer prá  dentro  da camisa. Não  vejo nenhum futuramento nessa noivação.ô lerdeza!
Mamãe  chamou papai na regulagem,  falou para ele deixar  o rapaz ser da forma que Deus tinha determinado, que bem ou mal, o rapaz era trabalhador  e obediente aos pais.
          
Terezinha  regulava entre 15 ou 16 anos, volta e meia ela me enxergava, sorria, e dava uma passadinha de mão  nas minhas tranças  besuntadas  de  banha  de  galinha,  eu entendia aquilo como um carinho. De resto, eu a achava tão  bonita como uma flor de Bonina.
 
Um dia, escutei um zum,zum,zum em casa entre mamãe  e Ana, elas estavam em um conversê que não  dava para eu alcançar  nenhum entendimento.  
As conversas delas estavam atrapalhadas, não  casava umas com as outras:
- Pra senhora ver minha Madrinha( mamãe  era madrinha de fogueira da Ana, nossa  ajudante  do lar) o acontecido  aconteceu na roça, quando Terezinha foi levá o almoço!
- Pois é, tanto  que Dona Eva mais seu Antônio  zelou da " passarinha" da filha, e ela acabou batendo asa!
Nesse instante eu entrei na conversa e perguntei:
- Mãe  qual passarinha que bateu asa? Foi a qua tava chocando no pé de Rosa? Foi?
    Minha mãe  deu as costas por resposta, perguntei  a Ana qual era a passarinha,  a Ana me mandou lamber  sabão.
 
A conversa estranha continuava, falavam que os pais da Terezinha estavam procurando  um buraco para enfiar a cara, para não  ter que olhar para a cara dos pais do Avelino, noivo babão compromissado.
Quanto mais eu escutava as duas, mais as minhas idéias  embaraiavam na minha cabeça, o palavreado trupicava dentro dos meus ouvidos e o entendimento  me escapava. 
Falaram que o rapaz causador do mal feito,  era um peão que não  tinha nem um couro para dormir em riba.   Nada combinava dentro do meu entendimento,  piorou ainda, quando Mamãe  falou que achava que moça estava esperando, mas não  falou esperando por quem.
A Ana respondeu:
- Valei me minha nossa senhora! Será  que ela está  mesmo esperando?
Eu sabia que se perguntasse  qualquer coisa, iam me mandar lamber sabão,  lamentei meu pai não  estar ali, papai falava tudo declarado na cara de quem quer que fosse.
Por fim, falaram que a pobre da Terezinha tinha desencaminhado e estava perdida.
Eu entendi que a moça pensou que aquele era o caminho certo e foi para o lugar que ia, só que o caminho  era errado, ela desencaminhou  e se perdeu em algum lugar. Me deu muita pena saber que a moça não  sabia caminhar direito. Eu era esperta, sempre tinha meus caminhos, meus " trieiros " e nunca me desencaminhava.
 
Nas minhas andanças  e desandanças, havia um lugar que eu sempre passava, que tinha  uma velha casinha  abandonada. O povo falava que era mal assombrada e que a noite se escutava gemura  de alma, e arrastamento de correntes,  porque dois escravos  tinham morrido acorrentados lá dentro.
 
Eu nunca escutei nada, mas também  só passava por lá de dia.
 
Foi assim, que eu tive o alegramento  de ver a Terezinha varrendo o terreiro da casinha mal assombrada! No mato eu tava, no mato fiquei, só olhando de longe sem que ela desse por fé, da minha presença.
 
Quando cheguei em casa, papai tinha chegado e mamãe  estava contando para ele, justamente que a Terezinha  tinha desencaminhado e estava perdida.
No maior contentamento  eu entrei no meio da conversa  e falei.
 
- A Terezinha  não  desencaminhou e nem tá perdida, acabei de ver ela varrendo o terreiro da casinha branca abandonada.
Mamãe  me chamou de abelhuda, enxerida,  e a Ana me chamou de " espalha fato"! Parecia que eu tinha falado uma coisa do outro mundo.
 
Em seguida, mamãe  mandou a Ana me levar para tomar banho e mandou ela lavar minha boca com sabão  , para eu falar menos.
Chorei até,  não  entendi o que tinha de errado eu ter achado a moça perdida , que desencaminhou na estrada.
 
Um dia, vi dona Eva, levar escondida, uma trouxa de roupa , entregar para a filha e voltar em cima do rasto, para não  ser vista. Falei para minha mãe  porque dona Eva tinha levado a trouxa  de roupa escondida para filha , mamãe falou que era sistema,  e que não  era para eu falar para ninguém.  Fiquei sem saber, quando mamãe  não  sabia a resposta  de algo, ela falava que era  sistema.
 
Depois, ela comentou com  a Ana, sobre a trouxa de roupa e a Ana falou:
- Mãe é mãe!
Então, as duas suspiraram juntas,um suspiro muito profundo, pareciam  estar com pena da Terezinha  e da mãe  dela.
 
Eu gostava de ficar escondida para ver a afeição  da Terezinha  e do peão  dela. Quando ele chegava da lida, ela corria ao encontro dele, ele pegava ela no colo e rodava com ela nos braços,  Terezinha  parecia  uma boneca de pano, levinha, levinha! Depois eles entravam na casinha tão  abraçados  que parecia uma só pessoa. Ele tinha uma viola, sentava em uma toco  que tinha na porta e cantava para ela, parava de cantar quando ela entregava para ele o café,  na xícara  esmaltada,  que arranca o couro do beiço, se a gente não ficar esperta.
Eu não  sabia que dia tinha sido o casório deles, achei que devia ter sido nos dias que meu gato Farofa me abandonou,  e eu variei  muito tempo, sem sair do quarto. Mas eu sabia que naquela casinha vivia duas pessoas que tinham um bem querer muito grande, e que a afeição  deles tinha espantado  toda tristeza das assombração , que um dia sofreram  ali. Papai  sempre falava que quando chega o amor, a dor vai embora,  no meu entendimento  era aquilo, o amor tinha mandado a dor embora.
Um dia, passando pela casinha feliz, reparei que a barriga da Terezinha  estava grandinha.  Outro  dia, reparei que estava maior. Mais adiante  reparei que estava enorme!
Falei para mamãe  que Terezinha  malemá  dava conta de abaixar e pegar  o cisco do terreiro quando varria, por conta do barrigão.
No dia seguinte, mamãe  pegou umas roupinhas de bebê  que não  servia mais no nosso bebê,  arrumou tudo em uma trouxinha,  pegou umas brevidades,  uns biscoitos e uma rapadura, e levou para Terezinha.  
Quando mamãe  falou:
- Ô de casa!
A Terezinha  garrou  num choro, que eu achei que ela fosse ter um passamento!
Mamãe  falou que a demora era pouca, que se ela precisasse de alguma  coisa, podia ir lá em casa chamar.
Por fim, abraçou a Terezinha  e falou:
- Que nossa senhora  do parto lhe dê uma boa hora!
Depois mamãe  pegou na minha mão  e fomos caminho à fora. Quase falei para ela que eu nunca ia " desencaminhar", mas achei por bem ficar calada.
Naquele  domingo, vovó veio nos visitar, trazer seu colo com cheiro de Alecrim,  para eu deitar ,  ela fazer cafuné sem pressa, e eu ficar na maior lerdeza...
Mamãe  então  falou à vovó, que tinha ido visitar a Terezinha.  Falou que a mãe  da moça  estava muito desgostosa, por não  poder servir a filha na hora da precisão, porque o seu Antônio  queria ver o Cramunhão do que ver a filha. Seu Antônio renegou a Terezinha  e falou que não  tinha mais filha.
Vovó falou que mamãe  tinha feito uma bondade muito boa, que Nossa Senhora se agradava dessas coisas. Vovó falou que também  ia fazer uma visita  à Terezinha  e que quem tivesse que se doer, que se doesse,  mas que ela ia, ela ia! Eu sabia que vovó ia fazer a visita, ela nunca deixou de fazer nada que  rebateu que faria.
 
Por conta de ter passado uns dias em Monte  Azul,  cidade que ficava perto da nossa fazenda em Lagoa Comprida, eu fiquei uns dias sem passar perto da casinha feliz. O dia que passei, fiquei espantada de ver Terezinha,  seu bem querer e o bebezinho deitadinho dentro de um caixotinho de madeira, cheio de capim para ficar macio e coberto com um paninho  que reconheci como ter sido  do meu irmãozinho. O bem querer da Terezinha,  estava dedilhando a violinha  magra e cantando para ela, Terezinha  estava tão  encantada  que nem me viu atravessando o terreiro. Lá estavam os três,  pareciam o menino Jesus e os pais dele, do presépio que mamãe  montava.
Achei tão  bonito,  mas tão  bonito que desentendi mais ainda, o porque que o pai dela renegava  a filha. Perguntei  ao papai se Terezinha  era descabeçada,  papai falou que não,  falou que ela tinha um bem querer  e correu atrás  do que queria, sem somar o preço  que tinha que pagar.
Algum tempo depois, fomos a uma festa de São  João  e seu Antônio  estava prá cima, prá  baixo com um bebê  mostrado pra todo mundo o neto dele no maior contentamento.  Depois vi a mamãe  comentando  com a Ana, que um dia, seu Antônio  mais dona Eva, entraram na igreja  e por um acaso do destino, ou pelo  acaso de Deus, sentaram lado a lado com a filha, que o bebê  na hora que viu o avô,  sorriu e estendeu os bracinhos. Ai o avô  não aguentou, caiu no choro. Ali mesmo se abraçaram e ali mesmo se perdoaram...
Muitos anos depois, passei no lugar da casinha feliz, as paredes  haviam sucumbido a mão  do tempo, mas a felicidade  não,  ela ainda morava lá, como fiel testemunha de uma afeição  que escreveu uma história,  de final feliz...

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Foto -  feita no Vale do Jequitinhonha. MG.