Wednesday, November 19, 2025

AMOR NÃO TEM IDADE: A HISTÓRIA DE VERA

 — Dona Vera, a senhora não tem vergonha? — a voz de dona Lourdes ecoou pelo corredor do prédio, carregada de veneno. Eu estava com as mãos trêmulas, tentando abrir a porta do meu apartamento no terceiro andar, quando ouvi o sussurro alto o suficiente para todos ouvirem. — Namorar nessa idade… e ainda com um homem mais novo! — completou ela, olhando para mim como se eu fosse um escândalo ambulante.

Meu coração disparou. Senti o rosto arder, mas ergui o queixo. — Vergonha? Vergonha é viver sem amor, Lourdes — respondi, tentando manter a dignidade. Entrei em casa e fechei a porta com força, mas as palavras dela ficaram martelando na minha cabeça.

Meu nome é Vera Lúcia, tenho 67 anos e moro há mais de quarenta anos no mesmo prédio, no bairro Santa Tereza, em Belo Horizonte. Fui professora de português a vida toda, casei cedo com o Antônio — um homem bom, mas que nunca me olhou de verdade. Fui mãe dedicada de dois filhos: Gustavo e Paula. Viúva há dez anos, achei que meu tempo de sentir borboletas no estômago tinha passado. Até conhecer o Rafael.

Rafael apareceu na minha vida como um raio em tarde nublada. Ele era filho da dona Maria do 202, tinha 49 anos e voltara para casa da mãe depois de um divórcio complicado. Nos esbarramos no elevador, conversamos sobre livros, música mineira, política… Em pouco tempo, estávamos rindo juntos na padaria da esquina, dividindo pão de queijo e confidências.

No começo, achei que era amizade. Mas quando ele segurou minha mão no cinema do shopping Boulevard e olhou nos meus olhos como se eu fosse a única mulher do mundo, senti algo que não sentia desde os vinte anos. O medo veio junto: medo do julgamento, da solidão, do abandono dos meus filhos.

Não demorou para as fofocas começarem. No salão de beleza da dona Cida, ouvi meu nome sussurrado entre escovas e tinturas:

— Você viu a Vera? — cochichava uma.
— Dizem que tá saindo com o Rafael! — respondia outra.
— Ele tem quase vinte anos a menos! —

Eu fingia não ouvir, mas cada palavra era uma facada. O pior foi quando Gustavo veio me visitar num domingo à tarde.

— Mãe, a senhora tá ficando com aquele cara? — ele perguntou, sem rodeios.

— Estou, Gustavo. E não é “aquele cara”. É o Rafael. Ele me faz bem — respondi, sentindo o chão sumir sob meus pés.

— A senhora não pensa nos netos? No que os outros vão falar? —

— Eu penso em mim também, filho. Pela primeira vez em muitos anos.

Ele saiu batendo a porta. Paula me ligou chorando:

— Mãe, você tá se expondo! O bairro inteiro comenta!

— Eu não sou uma vergonha pra vocês — respondi, mas minha voz falhou.

As semanas seguintes foram um inferno. Rafael queria sair comigo na praça, tomar sorvete na Savassi, mas eu sentia vergonha. Comecei a recusar os convites. Ele percebeu.

— Vera, você vai deixar o medo vencer? — ele perguntou numa noite chuvosa.

— Não sei se aguento… perdi meus filhos por sua causa — chorei.

Ele me abraçou forte:

— Você não perdeu ninguém. Eles só precisam de tempo pra entender que você merece ser feliz.

Mas será que mereço mesmo? Passei noites em claro pensando nisso. Lembrei das vezes em que abri mão dos meus sonhos para cuidar da família: deixei de fazer mestrado porque Antônio não queria; nunca viajei sozinha porque “não era coisa de mulher casada”; suportei traições caladas porque “mulher tem que aguentar”.

Agora que finalmente sentia vontade de viver de novo, parecia que o mundo inteiro queria me punir por isso.

A solidão foi se tornando insuportável. Rafael insistia:

— Vamos viajar pra Tiradentes? Só nós dois!

Eu hesitava:

— E se alguém ver?

Ele sorria:

— Que vejam! Que falem! Eles não pagam nossas contas nem conhecem nosso coração.

Um dia acordei e me olhei no espelho: cabelos brancos bem cuidados, rugas profundas ao redor dos olhos, mas um brilho novo no olhar. Vesti meu melhor vestido azul e liguei para Rafael:

— Me busca às dez. Quero tomar café na rua e andar de mãos dadas sem medo.

Naquele sábado ensolarado, caminhamos pela Feira Hippie da Afonso Pena como dois adolescentes apaixonados. Senti olhares, ouvi cochichos — mas também vi sorrisos cúmplices de mulheres mais velhas. Uma delas até me parou:

— Parabéns pela coragem! Queria ter metade da sua ousadia…

Voltei pra casa leve como nunca. Mas a paz durou pouco: naquela noite recebi uma mensagem da Paula:

“Mãe, não quero mais que você veja meus filhos enquanto estiver com esse homem.”

Meu mundo desabou. Chorei até dormir. Rafael tentou consolar:

— Eles vão voltar atrás…

Mas eu sabia: talvez nunca voltassem. Passei dias sem comer direito, evitando sair de casa. O telefone tocava e eu não atendia. Até que recebi uma carta do Gustavo:

“Mãe,
Sei que fui duro com você. Mas estou tentando entender seu lado. Só quero que saiba que te amo e quero te ver feliz.”

Chorei de alívio e esperança. Liguei para ele:

— Filho…

Ele chorou comigo do outro lado da linha:

— Desculpa por tudo, mãe.

Aos poucos, Paula também amoleceu. Um dia apareceu na minha porta com os netos:

— Vim trazer as crianças pra ver a vovó… — disse baixinho.

Eu abracei todos com força.

Hoje ainda enfrento olhares tortos no elevador e comentários maldosos no grupo do WhatsApp do prédio. Mas aprendi a ignorar. Rafael continua ao meu lado: viajamos juntos pelo interior de Minas, dançamos forró nas festas juninas da cidade e rimos como dois jovens apaixonados.

Às vezes ainda sinto medo: medo de perder meus filhos de novo, medo da solidão se Rafael partir antes de mim… Mas aprendi que viver com medo é morrer aos poucos.

Sei que muita gente vai me julgar até o fim dos meus dias. Mas pergunto: quantas mulheres vivem presas ao passado por medo do que os outros vão dizer? Quantas deixam de amar por vergonha?

Será mesmo justo abrir mão da própria felicidade para agradar quem nunca vai entender nosso coração?