Saturday, March 15, 2014

Meus cadernos

Primeira viagem do aço

                              O Brasil jamais fizera, até 1.967, qualquer exportação de aço. Todo ele, aqui produzido, era destinado ao consumo interno, juntamente com as tonelagens que importávamos dos Estados Unidos e de outros países. Neste ano, a USIMINAS resolveu quebrar a triste estatística e promover a primeira exportação de aço brasileiro. Seu destino era a Somisa, estatal argentina também ela produtora de aço, cuja usina se situava em San Nicolás, na margem do Rio da Prata.

                              E para celebrar o evento, que foi cantado em prosa e verso pelas classes produtoras brasileiras, a empresa promoveu uma visita de jornalistas, que chegariam a Buenos Aires abençoando a preciosa carga. A ideia do Dr. Amaro Lanari, presidente da empresa, foi desdobrada em uma programação muito bem elaborada.  Foram convidados vinte e cinco jornalistas e fotógrafos dos maiores órgãos de comunicação do país, incluindo professores e diretores de cursos superiores de jornalismo. Era uma equipe muito representativa de nossa informação. E quase na hora de embarcar o pessoal, entendeu a empresa de incluir mais um figurante, que representasse a Assembleia Legislativa do estado e sua Comissão recém-criada de Siderurgia e Mineração. Foi assim que a convite do Presidente Manoel Costa me vi envolvido naquela aventura acieira.

                              O programa era completo.. Começava com nossa visita às Minas da Cia Vale do Rio Doce, em Itabira, onde não só testemunhamos a extração mineral, o tratamento do produto e seu embarque naquela gigantesca composição com 173 vagões. Aí deixamos o ônibus e nos acomodamos confortavelmente no carro da diretoria, que foi plugado no “caboose”, último vagão da composição ferroviária. Trecho relativamente curto, que perlongava o Rio do Peixe e, em sequência, o nosso Rio Piracicaba, até o pátio da USIMINAS, em Ipatinga. Nada deixou de ser mostrado aos jornalistas, que perguntavam ao acompanhante da empresa cada detalhe operacional, iniciando pelo  “car dumper”,  que vira o vagão para esvazia-lo. Lá não faltou nada. A coqueria, a sinterização, os altos-fornos e aquelas cubas gigantescas, de dez toneladas de capacidade, lançando o gusa a mil e quatrocentos graus de temperatura dentro da aciaria.  Vimos os laboratórios, a correção composicional do produto e, por fim, o trabalho da laminação, brincando de jogar tênis com uma pequena bola de dez toneladas.  Para quem não havia tido, antes, a oportunidade de visitar uma usina siderúrgica, foi um impacto psicológico notável. A cada momento havia no ar uma expressão de admiração e surpresa, dita de uns para os outros, entre os visitantes. Assistimos, ainda, ao embarque do produto acabado na área ferroviária e desfrutamos de um lauto e generoso jantar, no velho Grande Hotel de Ipatinga.

                              Voltamos ao carro da diretoria, já engatado na composição ferroviária que levaria o produto ao porto e com as brumas da noite era só o estalar compassado das rodas nos trilhos e, em nosso vagão, a sinfonia dos companheiros no canto do truque, do 21 e do buraco. Até de madrugada.

                              Ficamos em Vitória vendo a carga dos navios. E para variar comendo tira-gosto de camarão. De muito camarão, que não deixou de produzir um bom estrago em alguns dos supimpas amantes do crustáceo.

                              Eram dois os navios contratados para a viagem. Um, bem novo, fabricado num estaleiro brasileiro, o “Pollux” e o outro uma navio sueco – ambos com a mesma capacidade de carga. Escolhi, por patriotismo, talvez, o navio brasileiro. Nele, estávamos treze jornalistas, eu e meu velho amigo Djalma de Azevedo, da USIMINAS, mas também companheiro da faculdade de direito. Fomos à noite para nossas cabines, já que nossa embarcação sairia às cinco horas da manhã- exatamente doze horas à frente do navio sueco.

                              Fui designado para viajar no camarote do empresário do navio. Era uma peça ampla, confortável e equipada com tudo para uma boa viagem. Não foi surpresa, quando no segundo dia no mar, chega o Humberto Motta, pedindo para acolhê-lo no largo sofá do camarote. O que ele realmente queria era sair lá de baixo, de um pequeno camarote ao lado do motor do navio, que espancava sua cabeça, impedindo-o de conciliar o sono. Depois dele vieram os outros companheiros que, com muito jeitinho, me solicitaram a mesa de jogo para fazerem suas rodadas de baralho. Assim, a viagem transcorreu entre celebrações lúdicas e etílicas de dia e à noite, sem faltar nas madrugadas. Aquilo só interrompia nos horários de refeição, que no navio cargueiro, em virtude do rodízio dos plantões da marinhagem, era servida a cada quatro horas. E, como o pessoal de bordo era majoritariamente do Nordeste, seis vezes por dia no refeitório geral era possível ter a indefectível carne de sol com farofa.

                              E mais cerveja, vinho e champanhe cujos estoques se esgotaram antes mesmo que a embarcação chegasse à foz do rio da Prata, onde tivemos mais um pernoite, já que os “práticos” que nos levariam rio acima até Buenos Aires, só trabalhavam até 16 horas.

                              O Comandante do navio, o veterano capitão Porciúncula, que às vezes nos afagava com um convite para acompanha-lo ao almoço, celebrava, diariamente, todos e cada um dos itens do regulamento e da tradição navais. Curioso foi constatar que ele, quarenta anos antes, comandara um ITA DO NORTE, que trouxera às Gerais, vindo do Piauí, a figura alegre e romanesca do Celius Áulicus, que estava conosco naquela viagem.
                              Preocupante no navio foi a questão de saúde. A bordo não havia médico, enfermagem e muito menos medicamento. Não havia talvez um único comprimido de Melhoral. Mas, antes de iniciar a viagem, eu passara em São Domingos do Prata e meu pai, médico cauteloso, que um dia fora convidado a ser médico de bordo numa linha francesa de vapores, colocou minha mala sobre a escrivaninha e começou a ocupar todos seus espaços disponíveis com amostra grátis para os mais variados acometimentos, que pudessem molestar na viagem.

                              Recordo-me de um dia em alto mar ter sido levado ao camarote do Afonso Celso Raso por alguns companheiros. Palavra que eu achei que ele ia morrer. Com aquela aparência – imaginei – ele seria uma baixa provável. Tinha uma mancha quase negra sob os olhos. E a esclera injetada de sangue, lembrava um filme de terror. A pele ictérica e seus cabelos, por sinal bem lisos, pareciam emplastrados de graxa. Ele só repetia uma frase: “eu quero morrer... eu quero morrer...”. Naquela altura devia já ter vomitado até a própria alma.

                              Peguei na mala um bom volume de amostras grátis e ajudado por alguns jornalistas começamos a ler e tentar interpretar o complexo e ininteligível palavreado das bulas. Foi assim que descobrimos antidepressivos e medicamentos para recuperação hepática. Foi o que lhe demos e pareceu ter dado certo, porque no dia seguinte o Afonso Celso, entre uma dose e outra de champanhe, estava de novo sentado na mesa de jogo.
                              Começamos a subir o rio da Prata, vendo a sinalização do canal navegável e ao chegar ao porto mais uma noite de plantão, decorrente do nosso tardio aportamento. Mas tudo valia como aprendizado da vida do navegante. A cada momento uma nova surpresa.

                              Mas surpresa de verdade tivemos ao desembarcar na manhã seguinte no “píer” de Buenos Aires. Imaginem quem se reuniu para nos dar as boas vindas. Foram exatamente os jornalistas que viajaram pelo navio sueco e haviam deixado o porto de Vitória doze horas atrás de nós. Mas como pode? Eles não passaram por nós. Não vimos hora alguma sua embarcação. E lá estavam eles, sorridentes e de braços abertos.

                              Na verdade, eles tinham sido vítimas de um incidente. Quando seu navio estava ao largo do porto do Rio de Janeiro, aproximadamente a duzentos quilômetros da costa, ocorreu uma explosão, que não só imobilizou a embarcação, mas, também, comprometeu todo o sistema elétrico de bordo, inclusive para efeito de comunicação com as autoridades portuárias e da eventual busca de socorro.

                              Ali ficaram eles. Paralisados e utilizando todos o seu respectivo colete salva vidas. Imagine-se aquela “troupe” iluminada à noite por lanternas e se preocupando já com a deterioração de alimentos congelados e, mais ainda, depois de trinta horas vendo a quebra da segurança psicológica de alguns.

                              O Leopoldo José de Oliveira, por exemplo, se agarrou com as duas mãos a uma trave metálica da estrutura do navio, de pé, imobilizado, olhos fixos no infinito, até que utilizassem as artes mágicas do Vinícius de Carvalho, da TV Itacolomy e da UFMG, que o hipnotizou com o que soltou a grade metálica e pode repousar.

                              No dia seguinte, horas tantas passadas, surge no horizonte um avião de nossa patrulha costeira. E o piloto sente logo que algo não ia bem. A duzentos quilômetros da costa, sem a tradicional esteira de espuma, tenta uma comunicação pelo rádio. Mas, para lembrar o poeta de Itabira, rádio não há mais... Baixando o aparelho, o piloto vê um marujo na torre do navio fazendo frenética sinalização de S.O.S. com as bandeiras nas mãos. Para tranquilidade do pessoal o avião faz uma longa curva e passa sobre a embarcação balançando as asas a dizer que demandaria por auxílio às autoridades marítimas.

                              Horas mais tarde comparece naquele ermo líquido um rebocador, que a todos coloca a salvo no porto do Rio. O que os jornalistas fizeram na imprensa da velha Capital foi uma verdadeira atoarda. A USIMINAS, agindo com rapidez, os coloca num voo internacional para Buenos Aires, onde gozaram merecido descanso.
                             
                              Foi o único incidente da primeira viagem do aço. Toda a programação se cumpriu na Argentina como previsto: entrevistas à televisão e jornais, visita à SOMISA, encontros com autoridades, “parrillas”, tudo mostrando que a boa iniciativa do Amaro Lanari viera para ficar. Tudo menos a realidade concreta de hoje, que vê nossa primeira exportadora de aço “em las manos de los Hermanos”.

                                                                          Paulino Cícero de Vasconcellos