Wednesday, October 25, 2023

MEUS CADERNOS - VIAGEM PARA O COLÉGIO- PAULINO CÍCERO VASCONCELLOS


Quando terminamos a 27 de novembro de 1.947 o curso primário no, então, Grupo Escolar Cônego João Pio, chegou o momento de meu pai decidir para onde nos mandar, a mim e ao Paulo, que havíamos terminado juntos o curso, já que a solução foi a repetência dele no quarto ano para chegarmos juntos ao ginasial. Na verdade, fizemos juntos o exame de admissão e fomos lado a lado até o quinto ano da Faculdade de Direito.
Não havia estabelecimento ginasial no Prata. Nem em Nova Era. Muito menos em João Monlevade, onde o estadual só foi instalado em l.958. A região só conhecia um colégio de moças em Itabira e outro em Coronel Fabriciano. Lá o ciclo da estudantada masculina passava por Ponte Nova, Ouro Preto ou Belo Horizonte. Meu pai resolveu inovar, mandando-nos para o Ginásio Dom Bosco, de Cachoeira do Campo, do qual jamais havíamos ouvido falar. A bem da verdade, também, não conhecíamos o Santo. Quem era ele? Viemos a identifica-lo quando fomos matriculados como internos, naquelas paragens muito diferentes das nossas e carregadas do musgo da história.
No segundo ano, começou a crescer a população pratiana em Cachoeira. Primeiro, lá aportou o Raimundo Mendes, filho de Marino e neto de Dona Julieta. Mais tarde chegaram os Perpétuos, Primeiro e Segundo, gêmeos, filhos de Zé Pereira e Dona Izabel, tios do nosso ex-prefeito Quinzinho. Terminado o Ginásio, pulamos para o Colégio Arquidiocesano de Ouro Preto, onde a colônia de nossa terra era quase inumerável. Lá estavam os filhos de Dona Ita, Hilário e Hazenclever, o Haroldo Mendes, todos os filhos do Chico Fubá – eram três – além da turma dos Pereira de Santa Izabel, o Antônio João do Benjamim Torres, que viria a ser meu cunhado no futuro, e de um timão que vinha do Dionísio. Com o tempo chegaram também o Zaga de Nonô Padeiro, que carregou na velha capital mineira a alcunha de Paddero, que ele chegou a imprimir em cartão de visita. Veiu com ele o Paulo de Geraldo Cotta, Alcysio Morais, Zué, filho de Lúcio Monteiro, o Celso do Félix de Castro e outros mais, que passaram a constituir uma plêiade. Todos eles, comandados pelo Antônio Guido, que governava o glorioso São Tomé e também o pessoal da Fazenda do Paiva.
No final dos semestres era hora de voltar para casa e formávamos um bando, que corajosamente punha em risco a segurança do trem de ferro: lembro-me do Zé Bené ou Zé do Barrinha, dionisiano muito forte, comandando um espetáculo de salta e pisa na plataforma, que gerava no vagão ferroviário um movimento ondulatório, altamente arriscado. Ah se meu pai visse aquilo!...
O trem chegava a Sabará em torno de dez a onze horas da noite. No dia seguinte, o expresso de Belo Horizonte para Nova Era passaria às seis e meia da manhã e nós o aguardávamos ansiosos, com passagem já comprada. Passávamos a noite na rua, fazendo algazarra, procurando um boteco de prato feito e alguns, tomando algo para aquecer a temperatura do corpo, naquele frio gélido do Rio das Velhas. Mas houve um dia em que o Hilário deu uma sugestão, prontamente, aceita. O Hotel das Gordas, conhecem? Fica ali ao lado da linha. A gente manda dois de vocês contratarem um quarto de duas camas, abrem em seguida a janela externa do quarto e nós todos em silêncio pulamos devagarzinho lá dentro. A gente se assenta na cama, encosta na parede, mas todos no mais absoluto silêncio. Ninguém pode dar um pio... No dia seguinte, quando as gordas chamam para o café da manhã, cada um salta a janela sem zoeira, vai para a estação e depois é só dividir a conta por todos.
Chegando a Monlevade, a gente saudava a perua de Dom Silvério, de Dídimo Teixeira, que ia sacolejando pelos trinta quilômetros de estrada de terra, parando aqui e acolá, subindo no final o velho Morro do Peão, quando, para nossa alegria, lá do alto, se descortinava a vista das primeiras casinhas de nossa terra. Outra alternativa, era seguirmos até Nova Era, onde nos aguardava o ônibus do Sr. Prudentino, ele próprio ou o Possato ao volante, com trajeto menor, algumas fazendas como a da Barra e da Vargem curtindo nossa atenção, e, por cima de tudo uma grande vantagem: “Nesse ônibus filho de Dr. Matheus não paga. Eles são sempre nossos convidados!...”
Se as férias eram as de dezembro, quando frequentemente a chuva já havia coberto as estradas de barro e lama, então era necessário colocar nos pneus a cobertura de uma corrente, que evitava deslizamentos e até acidentes. O ônibus andava com aquele barulho forte das correntes batendo na lataria ou nas peças, acordando as pessoas na rua se os trens tivessem atrasado. Aquilo só parava na Agência de correio, quando o Sr. Aristides Carteiro recebia as malas postais com a correspondência e os jornais destinados ao município.
Mas havia quatro estudantes, que eram mais privilegiados. Estudavam em Belo Horizonte. Eram o Evandro, o Everardo, que no futebol chamávamos Marreco, porque reclamava muito, e o Helvécio – todos filhos de Zé Braga e Dona Ninita. Eram do Colégio Padre Machado. E havia o Newton, filho do Argental Drummond, do Colégio Arnaldo, que depois se transformou em forte empresário do ramo hoteleiro na Capital. Além deles e de alguns seminaristas que ficavam em Mariana, mas nunca se enturmavam conosco, a não ser em obras eclesiásticas, havia um outro grupo para o qual meu pai, explorando suas boa relações com o diretor do estabelecimento, conseguia várias vagas de internato, isentas de pagamento. Ficava no Estado do Rio de Janeiro. Seu nome: Pinheiral. Lembro-me dos filhos de Guilherme Pimentel e Lilica, do Alfié, que lá concluíram com êxito suas primeiras letras: Zezinho e Renato. E, também, do Edson, irmão do Didi de Zé Cunha, do Gonzaga e do Ivo, este, filho de Tó e de Coraci Morais, além de outros.
O mais interessante era a viagem realizada via Ponte Nova para Dom Bosco ou Ouro Preto. Aí nos cabia tomar o ônibus à tarde para Dom Silvério, onde pernoitávamos, geralmente, no Hotel Santa Terezinha, de Aderbal Vale. Bonzinho o hotel, com uma jantar inesquecível. No dia seguinte cedo, tomávamos o trem da “The Leopoldina Railway Limited”. A passo de cágado os vagões deslizavam para Ponte Nova, Preço da passagem: dezesseis cruzeiros. Costumávamos descer do trem em movimento, apanhar alguns pés de cana nos múltiplos canaviais ao longo da linha e apanhávamos o trem pouco na frente.
No mesmo hotel pernoitava o chefe da composição ferroviária. Certa feita, no café da manhã, somos procurados e advertidos pelo Roberto Guerra Lage, de Nova Era, para não adquirirmos as passagens ferroviárias na estação de Dom Silvério. E nos explicou: havia conversado com o chefe do trem durante seu desjejum. E lhe expôs a dificuldade de nossos pais para sustentar-nos internos nos colégios da região. Ele bem compreendia o fato, porque tinha um filho que cursava medicina e o preço dos livros, quase todos importados, custavam os olhos da cara. Conversa vai, conversa vem, o Roberto ajustou com ele que cada um, chegando a Ponte Nova, lhe pagaria apenas cinco cruzeiros. Isto, bem entendido se não aparecesse um fiscal de linha para acompanha-lo, fiscalizando o sucessivo plic-nac-nac da perfuração dos bilhetes. Assim, por esta via tortuosa, que Deus me perdoe, fazia a economia de onze cruzeiros, que, por arrependimento, já distribuí mil vezes como esmola...
No mais, os dias de férias eram muito tranquilos. Futebol de tarde, arrasta-pé no Clube Recreativo Pratiano, que ficava no mesmo prédio em que morava o compadre Lúcio Monteiro, onde fomos todos daquela geração alunos de dança da saudosa Perpétua Mendes, nos saraus diários. Às vezes, a gente resolvia ensaiar e, depois, apresentar uma peça teatral, geralmente dirigida e orientada pelo Coletor Federal Heitor Neves. No mais, o ponto de encontro daquela enorme adolescência eram as barbearias do Jarbas e do Nô Barbeiro, ou, então, na sapataria do Zé Colodino. Foi aí que aprendemos o que é a vida e o que é o a mundo.
Paulino Cícero