Thursday, June 20, 2024

SOU DO TEMPO

 “Sou do tempo em que ainda se faziam visitas. Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no banho, porque a família toda iria ver algum conhecido.

Ninguém avisava nada, o costume era chegar de paraquedas mesmo. E os donos da casa recebiam alegres. Aos poucos, os moradores iam se apresentando, um por um.
– Mas vamos nos assentar, gente. Que surpresa agradável! A conversa rolava solta na sala.
Retratos na parede, duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro... residência singela e acolhedora. A nossa também era assim.
– Gente, vem aqui pra dentro que o café está pronto. Além disso: pães, bolos, broas, queijo fresco, manteiga, biscoitos, leite... tudo sobre a mesa.
Juntava todo mundo e as piadas pipocavam. As gargalhadas também. Pra que televisão? Pra que rua? Pra que droga? A vida estava ali, no riso, na conversa, no abraço…
Quando saíamos, os donos ficavam à porta até que virássemos a esquina. Ainda nos acenávamos. E voltávamos a nossa moradia muitas vezes sem carro, mas com o coração aquecido pela ternura da acolhida.
O tempo passou e me formei em solidão.
Tive bons professores: televisão, DVD, internet, e-mail, Whatsapp ... Cada um na sua e ninguém na de ninguém. Agora a gente combina encontros com os amigos assim:
– Vamos marcar uma saída!... – não se tem mais interesse em entrar nos lares.
Assim, as residências vão se transformando em túmulos sem epitáfios, que escondem mortos anônimos e possibilidades enterradas...
Que saudades do passado!”