Exmo. Sr.
Prefeito Municipal, Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal, Srs. Vereadores,
demais mesários, meus amigos, minhas senhoras, meus senhores, povo Pratiano:
Há 25 anos,
em 2 de janeiro de 1950, tive a ventura de conhecer São Domingos do Prata. Aqui
cheguei a convite do então prefeito Dr. José Matheus de Vasconcelos, desejoso
de mais um médico na cidade. Oito anos antes eu me iniciara em Pitangui, aonde
fui guiado pelo desembargador Onofre Mendes Júnior, grande amigo meu e
daquela comuna. Depois de conquistar com ingentes esforços a maior clinica,
tive, em 1947, a insensatez de envolver-me na política local. Levei-me não só
pela ambição, própria do jovem, como sobretudo pelo desejo de mais servir ao
povo pitanguiense. E tal foi o êxito alcançado que logo se me opuseram. Eu era
o único vereador ali não nascido que se elegera com expressiva votação, apesar
de apenas 5 anos ali domiciliado. Lutei como pude, porém, notei que meus
próprios correligionários não viam com bons olhos a minha ascensão popular. E,
quando tive minha dignidade atingida pela calúnia, para salvaguardar o futuro e
a tranqüilidade da família, ainda em formação, julguei melhor renunciar a tudo,
inclusive à Cadeira de Vereador, tão orgulhosamente conquistada. Mas só firmei
minha decisão em Belo Horizonte, depois de ouvir os meus familiares. Os
contemporâneos de faculdade, amigos e colegas --- Expedito Rolla Guerra e José
Lima Drummond , informados de minha resolução, convidaram-me em nome do Matheus
para vir até aqui. Eu era o médico do tipo que ele procurava, isto é, com
alguma vivência profissional no interior. E a minha já durava 8 anos. Aqui
chegando, dirigi-me à Prefeitura e, apresentado ao prefeito Doutor, dali sai
conquistado pela sua simpatia e bondade, pois me acolhera como se fosse um
velho conhecido. Garanti-lhe minha transferência. Para começar, naquele mesmo
dia, anoiteci em uma fazenda do Goiabal, onde fui a chamado, cedido pelo
colega. Em termos de Clínica, uma espécie de chamarisco culinário. E gostei do
tempero. Entretanto, onde a coragem de mudar-me de Pitangui? Lá não regressei
sequer para as despedidas, certo de que seria traído pelo coração.
Dei
procuração ao meu bondoso sogro, Cel. Alfeu Paschoal, para vender minha casa,
apurar alguns haveres e vim para o Prata. Nadir seguiu com o pai para fazer a
mudança. Três dias depois recebi um seu telegrama: “Povo não concorda sua
atitude. Está havendo abaixo-assinado. Responda urgente pelo telefone”.
Mostrei-o apenas ao Matheus. Liguei meu velho Ford 34, enfrentei o lamaçal ate
Monlevade e reafirmei à esposa minha decisão. A notícia, que estourava como
bomba, foi posteriormente por mim esclarecida através do Jornal e em Boletins
ao povo, de porta em porta, assim terminados: “A Pitangui adeus, adeus para
sempre”. São Domingos do Prata, para onde trouxe a família em 23-03-50, dia do
meu natalício, passou a ser razão de nossa existência. Nos primeiros meses vivi
como um exilado, desterrado de sua Pátria. Entretanto, fui-me adaptando. Mais
vivido, sofrido e experiente, cuidei apenas da Clinica que não foi prejudicada
pela volta do Matheus às atividades profissionais. Ele e o Dr. Edelberto já
octogenário, tudo faziam para ajudar-me, ao contrário de outros colegas, no
inicio de minha carreira. Em janeiro de 53 o velho hospital N. Sra. Das Dores
passava por sua pior crise, apesar dos esforços do seu provedor o Bacharel
Murilo Furtado Gomes. Numa manhã, para mim inesquecível, o Matheus fechou-se
comigo no consultório e pediu-me que assumisse a provedoria. Para ele, a única
solução para o caso. Somente um não-prateano poderia tomar as medidas drásticas
indispensáveis à salvação do hospital, ou ele se fecharia. Em seu apelo vi uma
oportunidade para demonstrar-lhe o meu reconhecimento. E um motivo para
trabalhar pelo povo que tão bem nos acolhera. A situação contudo era realmente
caótica. Tive que lançar mão do meu crédito pessoal no Armazém do Didi para
alimentar os doentes internados. Paguei salários atrasados havia seis meses.
Fiz, no Banco de Crédito e
Comércio, dirigido por meu saudoso amigo Vicente Sales, um empréstimo de Cr$
25.000,00 em promissória por mim emitida e avalizada com prazo de 120 dias.
Algumas verbas Estaduais e Federais haviam caducado, mas havia outras por
receber. Comecei a perder o sono, preocupado com as dificuldades .
Porém,certa manhã, recebi a
visita de um representante da Rhodia. Além de amostras ganhei uma estampa, e, ao
abrí-la, eis a grande surpresa: um retrato de Nossa Senhora da Farmácia. Ao
contemplá-la, tive a impressão de ouvi-la dizer: “Pode tomar as medidas que
quiser. Eu te darei a minha proteção”.
O Matheus me prometera
“carta branca” e apoio total. Com sua solidariedade terrena e a proteção
celestial da Mãe de Deus, lancei-me à batalha de corpo e alma.
Na época, havia sido
fundado pelo Paulo Moraes um jornalzinho: “Folha do Prata”. Desde menino, fui
dado à literatura. Aos 10 anos já compunha meus versos, pois o poeta nasceu em
mim antes do médico.
No jornal pitanguiense "Município de Pitangui”, no qual escrevo há 33 anos, eu tinha uma coluna
dominical intitulada “Crônicas”. Pratianizei-a sob o titulo “Coisas que
Acontecem”, também aos domingos, sempre com um soneto de minha autoria trazido
do oeste mineiro. Tive a idéia de fazer um Concurso de Beleza em benefício do
hospital, a Cr$ 1,00 cada voto, mas encontrei obstáculos. O Prata de 53 não
admitia tanto modernismo e nas minhas “Coisas que Acontecem”, ainda jovem e
inexperiente eu citava coisas e pessoas, em vez de apenas fatos. E isso deu
cada azar... Porém, camuflei o Concurso, batizando-o com o nome de Concurso de
Beleza e Caridade. Sua vencedora não seria proclamada “Miss São Domingos do
Prata”, e sim, “Rainha da Beleza e da Caridade”. A ela eu ofertaria um soneto
de minha lavra.
Pelo jornal exaltei a
colaboração dispensada pelo povo ao seu hospital, às portas da falência.
Supliquei, versejei, esmolei, vendi votos e não liguei para os derrotistas.
As apurações do Concurso
eram aos sábados, no Clube Pratiano. Sessenta dias depois, o resultado final.
Vencedora, Srta. Gessy Perdigão, hoje Sra. Gessy Perdigão de Miranda, minha
comadre, madrinha de Crisma da minha caçula.
A 2.ª, a Srta. Maria de
Lourdes Fraga (Ludi), e em 3.º a Srta. Maura Moraes.
Em companhia, se não me
engano, dos irmãos Adailton e Jairo Braga e do farmacêutico José Cotta, fui
comunicar o resultado à ganhadora. Recebeu-nos com sua bondosa austeridade, seu
tio, o Juiz de Paz Herculino Queiroz, que me disse: “Agradeço a distinção em
nome da moça e só concordo com o título, porque é em benefício do hospital
dirigido pelo Senhor, que muito admiro”. Dali partimos em agradecimentos às
demais concorrentes, todas satisfeitas em colaborar.
No dia seguinte, domingo, lá estava na “Folha
do Prata” o meu soneto “Caridade” dedicado a Gessy, como prometera.
E na Conta Bancária do
hospital, mais ou menos Cr$ 6.800,00; era o lucro total do Concurso. Recebi
algumas verbas atrasadas e, no dia que venceu a promissória, tive a alegria de
resgatá-la integralmente, restando um pequeno saldo a nosso favor.
Parti então para a reforma
do prédio. Comecei pela parte alta. Um velho casarão habitado por andorinhas
que tive que enxotar. Mas prometi-lhes no soneto “Aves do Céu”: “no velho
casarão suave abrigo, em nosso coração um peito amigo”.
No fim daquele ano, estava
concluída a reforma com o nome do hospital pintado na fachada em letras azuis,
apesar do provedor ser atleticano.
Abri uma subscrição popular
na barbearia do Nô para custear o fogueteiro comemorativo. Pelo que sei, o
maior aqui já havido. Durou das 19 às 21 horas, sem cessar. Foi aquela poluição
sonora e gasosa. Algumas velhas, temerosas, passavam correndo pela praça e,
vencida a maratona, exclamavam: “Êta homem doido!...”
Reeleito provedor, reformei
a parte baixa, construí outro necrotério e equipei o hospital com materiais
indispensáveis ao seu bom funcionamento.
Em fins de 54 quase tive
meu nome envolvido na política. Desta vez, porem, tive a prudência que antes me
faltara.
Nas eleições de 50 ainda
não havíamos transferido os títulos para aqui. Agora eu e Nadir éramos
eleitores pratianos.
Colega e amigo de um dos
candidatos a prefeito, Matheus, e também amigo do Zinho Drummond e toda sua
grande família, somente hoje devo e posso lhes revelar que me mantive neutro.
Dos dois únicos votos que eu dispunha dei o meu ao colega, o outro, da esposa, foi
dado à dupla, Zinho --- Lúcio Monteiro, e fiquei tranqüilo com a minha
consciência.
Em 55 fui trieleito
provedor. Limitei-me a economizar e receber o maior possível de verbas.
Às minhas expensas viajei a
Ponte Nova, Belo Horizonte e Rio, providenciando numerários e, quando tomei
posse como médico da Policia Civil, nomeado pelo meu grande mestre e amigo, o
então Governador Clóvis Salgado, havia em caixa Cr$ 300.000,00, que naquela
época davam para comprar umas 30 casas na cidade. Não posso deixar de destacar
aqui a atuação do benquisto pratiano João Braga, que foi meu tesoureiro e a
quem chamava e chamo meu ministro da Fazenda.
Transferindo-me para a
Capital, passei o cargo ao vice-provedor José de Castro Drummond, que continuou
a mesma política austera e produtiva por nós iniciada. Das cinzas do velho
nosocômio, regadas por nosso esforço e estoicismo, surgiu o prédio moderno que
enfeita e beneficia a cidade. Fixado na grande metrópole, continuei amigo desta
terra e do seu povo, pois só amigos aqui deixei. O que foi e vem sendo minha
luta em Belo Horizonte, só Deus o sabe.
Porém, conquistei meu
lugarzinho ao sol, se bem que já sentindo as primeiras brisas glaciais
prenunciando o inverno inevitável.
Remontando-me ao passado,
para mim tão grato e às vezes também ingrato, chego a me perguntar, tal Machado
de Assis; “Mudaram os tempos ou mudei eu?” E me explico: em 55, minha mudança
coincidiu com a formatura, no Grupo Cônego João Pio, do meu filho Fernando. Por
alguns generosos colegas dele foi levantada a minha candidatura para paraninfo
da turma. Mas meu nome foi democraticamente derrotado pelo vigário de então,
Padre Jose Silvério. Meus partidários, meninos todos, ficaram decepcionados.
Mas tranquilizei-os, afirmando: “Entre o Ministro de Deus e o Médico que apenas
cumpriu com o seu dever, a escolha certa teria de ser como foi. Bola pra
frente.”
Cabem aqui alguns flashes
do passado, já que eu estou vos falando como conterrâneo, pelo coração, e pela
cidadania tão honrosa que acabo de receber.
Em 1952, por ocasião das
Santas Missões aqui havidas, fui convidado pelo Matheus para saudar os
missionários em nome do povo, no dia do encerramento das fervorosas semanas.
Somente o saudoso colega
conhecia meus pendores literários e somente a ele mostrava meus versos, quando
chegavam impressos no jornal pitanguiense. Naquele tempo era comum vivermos às
escuras. Porém, quando havia luz elétrica na terra, e luz de Deus pelo espaço
infinito, a Cruz do Rosário era um espetáculo inspirador de fé e de poesia.
Preparei o discurso. Li-o
empolgadamente no final da Bênção do Santíssimo, ali no adro da velha Igreja e
terminei declamando o soneto: “A cruz do Rosário” dedicado a São Domingos do
Prata, como está em meu primeiro livro, editado no Prata, o único, pelo que sei
“Cantam as Musas”. Fui muito aplaudido e abençoado pelos padres. Depois do
discurso, um amigo que Deus já levou, chegou-se a mim e falou --- “Dr. Geraldo,
gostei muito do discurso e dos versos, uma beleza, mas me conta, quem foi que
escreveu eles pro senhor?...”
Ri muito, achei notável o
comentário e prometi que um dia revelaria o nome do poeta.
Quando soube em B.
Horizonte que estavam demolindo o velho casarão, não tive coragem de vê-lo em
ruínas. Concluído o novo prédio e marcada a sua inauguração, não fui sequer
convidado para a ela assistir.
Meses depois passei por
aqui e percorri com o Matheus a nova casa de saúde. Nesse dia, conversamos mais
com os olhos do que oralmente. Vimos juntos a placa comemorativa da
inauguração. Admiramos o retrato e o busto do Padre Pedro Maciel Vidigal, na
época também ilustre deputado federal. O retrato do Dr. Edelberto, que não é o
mesmo que eu inaugurei em 05-02-54, data do seu natalício. Entramos na sala com
o seu nome, justa homenagem ao venerando colega, e quando Matheus mostrou-me
também o retrato dele na portaria, ele se abriu: “Olha, Guerra, apesar de
provedor, não sugeri uma dessas homenagens. Meu retrato foi uma oferta do
Egidio Zanetti, que não pude recusar.”
“A partir de hoje, você
passa a ter um quarto cativo nessa casa. Sempre que quiser descansar um pouco, venha hospedar-se no hospital. Ele é seu também”. Daí este hábito que tenho
quando venho aqui sozinho; mandar pedir ao provedor reinante um lugar lá em cima.
De Pitangui, saí disposto a
não mais voltar, mas a saudade dos amigos me fez visitá-la. E quando lá cheguei
em 8-12-55, fui retirado do trem uma estação antes da chegada. Carregado nos
braços do povo. Fizemos as pazes.
Mas a esta altura eu já me
radicara em São Domingos do Prata. Em 1965, pela Lei 344 me foi outorgado o
titulo de Cidadão Honorário Pitanguiense. Em retribuição, quando, em 1972, tomei
posse na Cadeira nº 66 da Academia Municipalista de Letras, escolhi a “Velha
Serrana” para ser por mim representada. E prá meu patrono o literato
pitanguiense João Alves Corgozinho Filho.
Hoje, como prova de
gratidão, trouxe a São Domingos do Prata o meu grande amigo professor Eugênio
Morato, que representava aquela Academia e que é irmão do também professor José
Morato. E ele, Prof. José Morato, no seu 2º mandato como prefeito de Pitangui,
foi quem me concedeu o titulo de Cidadão Honorário.
Éramos adversários
políticos, mas fomos e somos grandes amigos. Uma coisa é política, outra,
amizade.
“Uma das coisas mais
difíceis que enfrentei como provedor do hospital N. Sra. Das Dores, foi o
afastamento de Sá Modesta, a bondosa velhinha que há tantos anos vinha nos
servindo. Porém, com o passar do tempo, cansada e doente, não mais estava em
condições de exercer a função de zeladora. Como é doloroso para quem administra
ter que fazer o que não deseja. Pensando resolver o problema de um modo justo e
humano, perdi dezesseis noites de sono. Contudo, encontrei a solução:
aposentá-la, com salário mínimo da época, Cr$ 350,00, garantindo enquanto ela
vivesse. Passei um documento, registrado em cartório, assinado por mim e pelo
João Braga. Quando chamei-a para conversarmos, ela, coitadinha, chegou
tremendo, julgando que seria dispensada. Mas foi ao contrário, premiada pelos
seus esforços. Daquele dia em diante, enquanto viveu passou a receber em casa
seu ordenado, pois meus sucessores cumpriram o prometido. Com seu afastamento, a
outra enfermeira, Maria da Conceição Duarte, se não me engano, de
apelido Filhinha, transferiu-se logo depois para Monlevade. E então eu tive que lançar mão
da prata da casa, a Nhá-Nhá do Mané Jacó, que de auxiliar, foi promovida a
zeladora. A vida continuou, o hospital não fechou um dia sequer. Deus sempre
tem uma pessoa no túnel. A gente pega essa pessoa, põe no time titular e o jogo
continua.
Em 28 de junho de 1968,
recebi a infausta noticia: O Matheus falecera. Vim para o enterro, mas não tive
coragem de assisti-lo, tal a emoção. Sua morte é uma das coisas com a qual até
hoje não me conformei. Passei três anos sem visitar o Prata, pois não me
conformava em aqui não vê-lo como sempre, sorridente e amigo.
Contudo, em 1971, tive de
enfrentar a realidade e aqui cheguei para tirar um atestado do tempo trabalhado
como médico, para efeito de aposentadoria, junto ao INPS. Fui recebido pelo
colega Dr. Antônio Roberto, então à frente da Prefeitura e que tudo me
facilitou. Deus não desamparou São Domingos do Prata. Deu-lhe outro médico
competente, caridoso e humano na pessoa do caro colega, a quem tanto devemos e
que realizou em apenas dois anos de mandato, uma das maiores administrações.
Construiu uma grande praça,
bonita e ajardinada e lhe deu o nome de Praça Dr. JOSÉ MATHEUS DE VASCONCELLOS.
Não haveria melhor e mais justa homenagem ao saudoso pratiano. Maior e mais
florida que a praça com seu nome, era o coração de quem tanto sacrificou-se por
sua terra.
Há mais ou menos 4 anos,
visitando o hospital, fui recebido pelo provedor Antônio Mendes e ele,
generosamente pediu-me um retrato para figurar na galeria de seus benfeitores.
Avesso a homenagens, relutei em tirá-lo, mesmo porque com essa cara, não de
galã, mas de bandido de televisão, não estava disposto a enfrentar os estúdios
fotográficos. Porém, há dois meses, contando para meu fraternal amigo José de
Castro Perdigão a alegria que tive em ser cidadão honorário de Pitangui, dezessete anos depois de lá sair, e relatando minha displicência quanto ao
retrato para o hospital, ele me disse: “Meu filho Ailton Petrônio é agora o
Presidente da Câmara Municipal. Além do retrato, também vamos homenageá-lo com
a cidadania honorária.”
E hoje, meus amigos, com o
coração jubiloso aqui estou para tornar-me também pratiano. Fiquei
emocionadíssimo quando me vi na parede da casa pela qual sempre pelejei.
Francamente, acho que tanto
não fiz para merecer tamanha prova de gratidão, a qual mais credito à
generosidade do povo em cujo meio vivi os seis anos mais tranqüilos de minha
vida. Em meu vocabulário faltam palavras para agradecer tão grande
manifestação.
Se eu fosse
citar os nomes dos amigos que aqui tive, muitos já levados por Deus, ficaria o
resto da tarde a enumerá-los. Porém, como os pratianos são quase todos parentes
entre as famílias, lembrarei a figura de duas saudosas matronas, englobando
nelas as saudações que a todos dirijo, envoltas em meu eterno reconhecimento. Ah!
se aqui estivesse D. Leonor Perdigão. Quando poderia imaginar em receber de um
de seus netos a cidadania honorária. Teria que abraçá-la e dizer-lhe:
“Bondosa Dona Leonor:
Não ouça mais,
por favor,
O tribuno
hipertensivo.
Pois não existe
motivo
de tanta
flagelação.
Os versos sim,
deste bardo,
E a voz do Carlos
Galhardo,
Fazem bem ao
coração.”
Ah! se aqui
estivesse D. Julieta Perdigão Mendes, a querida “Vovó Eta” de quem fui clinico
durante quinze anos, ajudando-a a suportar seu inverno, mas inverno primaveril.
Dela recolhi um dos últimos sorrisos, gravado perenemente no coração e na
saudade.
Meu caro prefeito Antônio
Guido: como amigo e pratiano desejo-lhe fazer uma sugestão e um pedido. A
sugestão é esta: mande colocar nos cem quilômetros aquém e além de nossa terra
esse convite, visando incrementar o turismo, antecipando a vinda do asfalto:
“Seja bem-vindo a São Domingos do Prata, a pequena cidade-grande, onde todos
são amigos de todos.” O pedido é este: mande iluminar novamente a Cruz do
Rosário. Se em 1952, com o Prata praticamente às escuras, ela, quando luminosa,
inspirava poesia, como se concebê-la apagada, se temos luz da CEMIG? Em troca
lhe prometo mandar erigir, às minhas expensas, uma placa, modesta mas
significativa, com meu soneto a “Cruz do Rosário”, assim redigido e atualizado:
“Aquela cruz
erguida para o céu,
Iluminando a torre
da capela,
é para um povo
altiva sentinela,
um símbolo de fé,
rico troféu.
Ao vê-la assim,
sublime, humano réu
que sou, imploro
à luz meiga e singela
a doce paz da
noite calma e bela
para quem sofre,
triste, sempre ao léu.
A súplica que
envolve minha prece
conforta o
coração de quem padece,
e revigora o
ardor dos sonhos meus.
Então, contrito,
eu traço a cruz no peito.
E num profundo
gesto de respeito,
Volto os olhos
humildes para Deus.”
Não é dado ao homem
escolher de quem nascer ou onde nascer. Vim ao mundo pertinho dessas montanhas,
na pequena estação de Bandeiras, município de Ponte Nova, em 23-03-18, onde meu
saudoso pai era agente. Dali saí nos braços de minha mãe, aos oito meses. E só
fui conhecer o meu torrão natal em meados de 53, quando aqui residia, e lá
estive em companhia de minha mãe, minha esposa, meus filhos, e levado pelo Urgel,
em meu Austin 52. Fizemos o percurso em apenas 3 horas na estrada de terra.
Hoje deve ser uma hora e no asfalto. Lá chegando encontrei o agente que
sucedera a meu pai, 35 anos antes. Visitei o quarto onde nasci e onde tive o
meu primeiro sono interrompido por um apito de trem. Conta minha mãe que meu
umbigo fora enterrado sob uma roseira, porque meu pai desejava que minha vida
fosse um mar de rosas. Entretanto, Deus sabe quantos espinhos me feriram ao
longo da existência. Desejei ver o lendário roseiral. Sabem o que havia em seu
lugar? Um pé de mamão, mamão macho. Contou-me o agente que ele sempre brotava,
toda vez que parecia fenecer. Então eu pensei comigo: deve ser eu mesmo. No
regresso, divisei do alto a pequena terrinha onde nasci. Entre duas colinas, lá
estava a casa da estação, o armazém, as ruínas da fazenda dos Bandeiras e como
único melhoramento, em 35 anos, um campo de futebol. Fui criado peregrinando
por diversos lugares. Onde estive como médico, tive a felicidade de participar
da cidadania local. Amo Pitangui e amo S. Domingos do Prata, “Entre les deux
mon coeur balance”.
Amaria
tantas cidades quantas habitasse porque minha capacidade de amar é ilimitada,
no significado divino e humano do “amai-vos uns aos outros”. Se “somente o amor
constrói para a eternidade”, é amando ao próximo que nos preparamos para a vida
eterna. Filho honorário de duas cidades, posso escolher entre elas onde
repousar eternamente. Se geograficamente S. Domingos do Prata está mais próximo
do meu torrão de nascimento, e a ela sendo tão ligado pelos laços de sincera
amizade, desejo, publicamente, fazer perante minha esposa, meus filhos, filhas,
noras, genro, irmão, cunhados, sobrinhos, afilhados e até o meu primeiro neto,
minha família afinal, um pedido eu espero que cumpram: --- quando eu renascer
para a vida eterna, coloquem-me à sombra da Cruz do Rosário, perto de amigos
aos quais tanto quis, tanto quero e me precederam na vida eterna. Numa lápide
singela e modesta, a data do meu inicio de vida terrestre --- 23-03-18 e a de
minha libertação. Abaixo, subscrito por minha assinatura, este soneto:
“Ao transpor os
umbrais da eternidade,
quero levar um
lírio na lapela.
Quero que os
sinos toquem na capela
Anunciando minha
liberdade.
Não sei quando
será a hora incerta,
Mas noutra vida
amigos eu terei.
Milhares que de
dores eu salvei,
e não pude salvar
da morte certa.
De longe eu
ouvirei tanger os sinos.
musas chorando e
entoando hinos,
para eu chegar
feliz ao fim da meta.
A terna amada, os
filhos porão luto.
Amigos renderão o
seu tributo,
ao se extinguir a
voz deste poeta.”