Morava no Gandra, pequeno povoado
a beira de poeirenta estradinha. Eugênio, seu nome, se corretamente pronunciado.
Mas ele próprio se denominava Ogênio. Um dos mais curiosos personagens que
conheci, verdadeiro folclore ambulante. Preto e franzino, pés descalços e pobremente
trajado, lavrava a terra com o carinho de seus ancestrais, sob sol ou chuva.
Mas, quando cismava de ir à cidade para tomar uns goles, ninguém o impedia. E
que festa quando chegava... Parecia a estréia de um circo. A criançada era a
primeira a se manifestar: --- “Ogênio chegou... Ogênio chegou...” Para a terra
pacata, ele representava um ator de teatro. E se entregava, ritual e
fervorosamente a seu fraco temporário: a cachaça Como bebia... E com uma
particularidade: não pagava. Mas pagavam para ele, para vê-lo estalar a língua
e exclamar, extasiado: BENDITA MALDIÇÃO. Perambulava, de boteco em boteco. E nos
intervalos, freqüentava as barbearias, onde, em geral, havia um radio a cantarolar.
Ele, porém, para contar suas potocas, delicadamente desligava o aparelho,
pedindo desculpas, como se a uma pessoa: --- “Com licença, rádio...” E na
saída, ligava-o novamente, recomendando, solicito: ---“Fala, rádio...” Durante
sua estada, ouvia e comentava as novidades. Duvidoso de alguma, dia, surpreso:
--- “Ora, mas por quê, meu Deus?...” Sua resistência era impressionante. Bebia
seguidamente, pouco comia e serestava ate altas horas, no adro da Igreja, onde
adormecia. Cedinho, entretanto, lá estava em frente ao Bar Semião, para
continuar a temporada. E esta durava vários dias, ate que Maria Paula,
impaciente e raivosa, vinha buscá-lo. Quando lhe informavam: ---“Ogênio, sua
mulher chegou”, ele retrucava, caprichando no português: “Mulher, não , esposa.
Sou casado com ela, no Padre e na Lei...” E que jocoso o reencontro do casal:
---Maria, ordenava: ---“Ogênio, já prá casa”. E ele, zombeteiro: ---“Pra quê,
Muié, a rua é óter (ótima)...” Esgotada a paciência, só mesmo aos trancos e
tapas, ela conseguia eu tomasse o rumo de casa. E uma vez chegado, parecia nada
haver acontecido. Após um sono reparador, ei-lo novamente no eito. E só voltava
a beber, “na rua”, se a vontade o dominasse, dias ou meses depois. Apesar de
tanta extravagância, chegou além dos setenta, lúcido e brincalhão, como sempre.
Até que um derrame cerebral o levou, talvez quando estivesse planejando nova
escapada rumo ao Prata, que tanto amava, se bem que orgulhosamente se
declarasse itabirano. Lamento não haver assistido seu funeral, ocorrido depois
de minha mudança. Honrarias justas, cívicas e religiosas lhe foram prestadas.
Se algum dia me perguntarem quantos gênios conheci, pessoalmente, responderei,
convicto: um, apenas, o Ogênio, do Gandra. Pois genial foi sua concepção de
felicidade: fugir da mulher, desligar-se de tudo, acampar na rua e bebericar
com os amigos e à custa deles. E somente um gênio poderia resumir, em duas
palavras, a inimitável definição de cachaça: BENDITA MALDIÇÃO.
Dr, Geraldo Guerra
Dr, Geraldo Guerra