Um amigo meu, nos Estados Unidos, comprou uma casa velha, de mais de um
século, conservada, como muitas por lá existem. Muitas coisas a serem
consertadas. Tudo teria que ser pintado de novo. Antes de pintar com as cores
novas ele achou melhor raspar das paredes a cor vermelha, um azul sujo e
desbotado. Raspando o azul, debaixo dele surgiu a cor rosa, mais velha ainda
que o azul. Raspou-a também. Aí apareceu o creme, e depois do creme o branco...
Cada morador havia coberto a cor anterior com uma cor nova. E assim ele foi
indo, pacientemente, camada após camada. Queria chegar a cor original, que
apareceria depois que todas as camadas de tinta fossem raspadas. Finalmente o trabalho
terminou. E o que encontrou foi surpresa inesperada que o encheu de alegria.
Mais bonito que qualquer tinta: madeira linda, o maravilhoso pinho-de-riga, com
nervuras formando sinuosos arabescos cor castanha contra um fundo marfim. Parábola:
somos aquela casa. Ao nascer
somos pinho-de-riga puro. Mas logo começam as demãos de tinta. Cada um pinta
sobre nós a cor de sua preferência. Todos são pintores: pais, avós,
professores, padres, pastores. Até que o nosso corpo desaparece. Claro, não é
com tinta e pincel que eles nos pintam. O pincel é a fala. A tinta são as
palavras. Falam, as palavras grudam o corpo, entram na carne. Ao final o nosso
corpo está coberto de tatuagens da cabeça aos pés. Educados. Quem somos? “O
intervalo entre o nosso desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de
nós”, responde Álvaro de Campos.
Contra isso
lutava Alberto Caeiro:
Procuro
despir-me do que aprendi.
Procuro
esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
e raspar a tinta com que me
pintaram os sentidos.
Desencaixotar minhas emoções
verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu,
não Alberto Caeiro,
mas um animal humano que a
natureza produziu.
Mas isso (triste de nós que
trazemos a alma vestida!)
isso exige um estudo
profundo,
uma aprendizagem de
desaprender...
Barthes se descobriu atacado pela mesma doença que
afligira Caeiro. Através dos anos seu corpo foi coberto por saberes que se
sedimentaram sobre a sua pele. Agora ele estava enterrado, esquecido de si
mesmo. Só havia um caminho: desaprender tudo. “Empreendo, pois”, ele diz,
“deixar-me levar pela força de toda força viva: o esquecimento”. Esquecer é
raspar a tinta. A fim de se lembrar do esquecido. E o que ele viu, depois de
terminada a raspagem, encantou-o: lá estava a sua alma, o jeito original de
saber – “sabedoria”. Diz o Tao Te Ching que os saberes podem ser somados
(como as camadas de tinta). Mas sabedoria só se obtém por subtração, por
raspagem e esquecimento.
Com isso concorda a psicanálise. Por isso ela não
usa nem pincéis nem tinta, e não sabe somar. “Sem memória”, diz Bion.
Dedica-se, ao contrário, às raspagens e lixações, na esperança de encontrar,
para além do que sabemos, a sabedoria que ignoramos.
Digo isso como a introdução a uma série de
raspagens teológicas que pretendo fazer. Quero raspar a tatuagem de Deus com
que cobriram nossos corpos. Teológicos, sacerdotes, fiéis – todos eles se
dedicam a essa arte perversa. Pensam que suas palavras são gaiolas para pegar
Deus.
Com isso ofendem Deus: pitam-no como pássaro
engaiolável. Mas Deus é Vento (é isso que quer dizer a palavra “Espírito”), não
pode ser engaiolado como passarinho. “Tudo aquilo que não temos palavras é
porque já passamos adiante”, diz Nietzsche. Em outras palavras: não adianta,
quando a gaiola se fecha, é porque o sagrado já voou para outro lugar. Deus
está sempre além das palavras, no lugar onde as palavras não chegam, onde só
existe o silencio. “A Palavra”, diz a Adélia, “é coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada”.
As gaiolas de pegar Deus têm muitos nomes: rezas,
terços, novenas, orações, mantras, promessas, templos, Bíblia, Corão. Mas só os
cegos não percebem que elas estão sempre vazias.
Se deixarmos as metáforas bíblicas e passarmos para
as metáforas do Tão Te Ching seremos
transformados de pássaros em peixes: sairemos do vento e mergulhamos no Rio –
do jeito mesmo como Escher viu e pintou, no intervalo
(guarde esta palavra!) dos patos
que voam estão os peixes que nadam!
O Rio
Cujo nome sabemos não é
rio eterno.
O nome que pode ser dito
não é o nome eterno.
O Rio que não tem nome
dele nascem todos os rios que têm nome.
O Rio que não tem nome é
o princípio dos céus e da terra.
Os rios que têm nome;
neles nadam dez mil peixes diferentes.
O
caminho para Deus começa com o esquecimento de todos os nomes que nos foram
ensinados.
Deus não se vê
diretamente. Só através de espelhos. Bons espelhos não têm memória. São vazios.
A gente sai da frente deles, e prontamente de nós se esquecem. Se tivessem
memória eles guardariam o nosso rosto, mesmo na nossa ausência. Uma outra
pessoa que chegasse e desejasse ver o seu rosto só veria uma imagem borrada,
mistura do rosto dela e do meu.
Nossos olhos, espelhos,
através dos anos, foram sendo cobertos com pinturas que os religiosos diziam
ser imagem do rosto divino. E o espelho deixou de ser espelho. Agora olhamos
bem para eles e o que vemos não é o rosto de Deus, mas as palavras que os
homens sobre eles escreveram: caricatura grotesca, que não é possível amar. É
preciso restaurar o espelho seguindo a técnica estabelecida por Ângelus Silésius:
Para refletir em tudo o
que aqui e agora existe,
meu coração há de ser
uma espelho luminoso,
claro e vazio.
Vamos fazer, por algumas semanas, o mesmo que fez meu
amigo com as paredes pintadas de sua velha casa. Quem sabe, ao final do
trabalho, encontraremos um pingo-de-riga?
Extraído de: A Festa de Maria, Rubem Alves,
Editora Papirus.