Wednesday, October 01, 2014

ESQUECER



Um amigo meu, nos Estados Unidos, comprou uma casa velha, de mais de um século, conservada, como muitas por lá existem. Muitas coisas a serem consertadas. Tudo teria que ser pintado de novo. Antes de pintar com as cores novas ele achou melhor raspar das paredes a cor vermelha, um azul sujo e desbotado. Raspando o azul, debaixo dele surgiu a cor rosa, mais velha ainda que o azul. Raspou-a também. Aí apareceu o creme, e depois do creme o branco... Cada morador havia coberto a cor anterior com uma cor nova. E assim ele foi indo, pacientemente, camada após camada. Queria chegar a cor original, que apareceria depois que todas as camadas de tinta fossem raspadas. Finalmente o trabalho terminou. E o que encontrou foi surpresa inesperada que o encheu de alegria. Mais bonito que qualquer tinta: madeira linda, o maravilhoso pinho-de-riga, com nervuras formando sinuosos arabescos cor castanha contra um fundo marfim. Parábola: somos aquela casa. Ao nascer somos pinho-de-riga puro. Mas logo começam as demãos de tinta. Cada um pinta sobre nós a cor de sua preferência. Todos são pintores: pais, avós, professores, padres, pastores. Até que o nosso corpo desaparece. Claro, não é com tinta e pincel que eles nos pintam. O pincel é a fala. A tinta são as palavras. Falam, as palavras grudam o corpo, entram na carne. Ao final o nosso corpo está coberto de tatuagens da cabeça aos pés. Educados. Quem somos? “O intervalo entre o nosso desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de nós”, responde Álvaro de Campos.

                        Contra isso lutava Alberto Caeiro:
                        Procuro despir-me do que aprendi.
                        Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos.
Desencaixotar minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
mas um animal humano que a natureza produziu.
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!)
isso exige um estudo profundo,
uma aprendizagem de desaprender...

Barthes se descobriu atacado pela mesma doença que afligira Caeiro. Através dos anos seu corpo foi coberto por saberes que se sedimentaram sobre a sua pele. Agora ele estava enterrado, esquecido de si mesmo. Só havia um caminho: desaprender tudo. “Empreendo, pois”, ele diz, “deixar-me levar pela força de toda força viva: o esquecimento”. Esquecer é raspar a tinta. A fim de se lembrar do esquecido. E o que ele viu, depois de terminada a raspagem, encantou-o: lá estava a sua alma, o jeito original de saber – “sabedoria”. Diz o Tao Te Ching que os saberes podem ser somados (como as camadas de tinta). Mas sabedoria só se obtém por subtração, por raspagem e esquecimento.
Com isso concorda a psicanálise. Por isso ela não usa nem pincéis nem tinta, e não sabe somar. “Sem memória”, diz Bion. Dedica-se, ao contrário, às raspagens e lixações, na esperança de encontrar, para além do que sabemos, a sabedoria que ignoramos.
Digo isso como a introdução a uma série de raspagens teológicas que pretendo fazer. Quero raspar a tatuagem de Deus com que cobriram nossos corpos. Teológicos, sacerdotes, fiéis – todos eles se dedicam a essa arte perversa. Pensam que suas palavras são gaiolas para pegar Deus.
Com isso ofendem Deus: pitam-no como pássaro engaiolável. Mas Deus é Vento (é isso que quer dizer a palavra “Espírito”), não pode ser engaiolado como passarinho. “Tudo aquilo que não temos palavras é porque já passamos adiante”, diz Nietzsche. Em outras palavras: não adianta, quando a gaiola se fecha, é porque o sagrado já voou para outro lugar. Deus está sempre além das palavras, no lugar onde as palavras não chegam, onde só existe o silencio. “A Palavra”, diz a Adélia, “é coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada”.
As gaiolas de pegar Deus têm muitos nomes: rezas, terços, novenas, orações, mantras, promessas, templos, Bíblia, Corão. Mas só os cegos não percebem que elas estão sempre vazias.
Se deixarmos as metáforas bíblicas e passarmos para as metáforas do Tão Te Ching seremos transformados de pássaros em peixes: sairemos do vento e mergulhamos no Rio – do jeito mesmo como Escher viu e pintou, no intervalo (guarde esta palavra!) dos patos que voam estão os peixes que nadam!
O Rio
Cujo nome sabemos não é rio eterno.
O nome que pode ser dito não é o nome eterno.
O Rio que não tem nome dele nascem todos os rios que têm nome.
O Rio que não tem nome é o princípio dos céus e da terra.
Os rios que têm nome; neles nadam dez mil peixes diferentes. 
O caminho para Deus começa com o esquecimento de todos os nomes que nos foram ensinados.
Deus não se vê diretamente. Só através de espelhos. Bons espelhos não têm memória. São vazios. A gente sai da frente deles, e prontamente de nós se esquecem. Se tivessem memória eles guardariam o nosso rosto, mesmo na nossa ausência. Uma outra pessoa que chegasse e desejasse ver o seu rosto só veria uma imagem borrada, mistura do rosto dela e do meu.
Nossos olhos, espelhos, através dos anos, foram sendo cobertos com pinturas que os religiosos diziam ser imagem do rosto divino. E o espelho deixou de ser espelho. Agora olhamos bem para eles e o que vemos não é o rosto de Deus, mas as palavras que os homens sobre eles escreveram: caricatura grotesca, que não é possível amar. É preciso restaurar o espelho seguindo a técnica estabelecida por Ângelus Silésius:
Para refletir em tudo o que aqui e agora existe,
meu coração há de ser uma espelho luminoso,
claro e vazio.
Vamos fazer, por algumas semanas, o mesmo que fez meu amigo com as paredes pintadas de sua velha casa. Quem sabe, ao final do trabalho, encontraremos um pingo-de-riga?

Extraído de: A Festa de Maria, Rubem Alves, Editora Papirus.