Friday, October 17, 2014

O HOMEM QUE CONHECEU O AMOR



     Do alto dos seus oitenta anos, me disse: “na verdade, fui muito amado”. E dizia isto com tal plenitude como quem dissesse: sempre trouxeram flores, sempre comi ostras à beira mar.
     Não havia arrogância em sua frase, mas algo entre a humanidade e a petulância sagrada. Parecia um pintor, que olhando o quadro terminado assina o seu nome embaixo. Havia um certo fastio em suas palavras e gestos. Se retirava de um banquete satisfeito. Parecia pronto para morrer, já que sempre estivera pronto para amar.
     Uns dizem: casei várias vezes. Outros assinalam: fiz vários filhos. Outro dia li em uma revista um conhecido ator dizendo: tive todas as mulheres que quis. Outros, ainda, dizem: não posso viver sem fulana (ou fulano). Na Bíblia está que Abraão gerou Isaac, Issac gerou Jacó e Jacó gerou as doze tribos de Israel. Mas nenhum deles disse “na verdade fui muito amado”.
     Mas quando do alto de seus oitenta anos aquele homem desfechou sobre mim aquela frase me senti não apenas como filho que quer ser engenheiro como o pai. Senti-me um garoto de quatro anos, de calças curtas, se dizendo: quando eu crescer quero ser um homem de oitenta anos, que diga: “amei muito, na verdade fui muito amado”.
     Ouvindo-o, por um instante, suspeitei que a psicanálise havia fracassado; que tudo aquilo que Freud sempre disse, de que o desejo nunca é preenchido, que se o é, o é por frações de segundos, e que a vida é insatisfação e procura, tudo isto era coisa passada.
    Sim porque sobre o amor há muitas frases inquietantes por aí. Bilac nos dizia salomônico: “eu tenho amado tanto e não conheço o amor”. Ataulfo Alves dizia: “eu era feliz e não sabia”. Frase que se pode atualizar: eu era amado e não sabia. Porque nem todos sabem reconhecer quando são amados. Flores despencam sobre arco-íris sobre sua cama, um banquete real está sendo servido e, sonolento, olha noutra direção.
      Sei que vocês vão me repreender, dizendo: deveria ter-nos apresentado o personagem, também o queríamos conhecer, repartir tal acontecimento. E é justa a reprimenda. Porque quando alguém está amando, já nos contamina de jasmins. Temos vontade de dizer, vendo-o passar: ame por mim, já que não pode se deter para me amar a mim.
    Reconhece-se a cinqüenta metros um desamado, o carente. Mas reconhece-se a cem metros o bem-amado. Lá vem ele: sua luz nos chega antes de suas roupas e pele. Sinos batem nas dobras de seu ser. Pássaros pousam em meus ombros e frases. Flores estão colorindo o chão em que pisou.
      O que ama é disseminador.
      Tocar neles é colher virtudes.
     O bem amado dá a impressão de inesgotável. E é o contrário de Átila: por onde passa renascem cidades.
      O bem amado é uma usina de luz. Tão necessário à comunidade, que deveria ser declarado um bem de utilidade pública.